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Um espaço que agora se ocupa em dar destino à vida de um personagem.

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terça-feira, agosto 29, 2006

Fraturas transcendentes

"O grande desafio de um fotógrafo é conseguir transferir o seu coração para a ponta do seu indicador no momento que dispara sua câmera". (Robert Doisneau)

Dias atrás, olhei para um porta-retratos na casa de um amigo meu. Não havia nada de interessante na sua moldura, típica de um porta-retratos de uma família média (que conceito confortavelmente idiota o médio!). Muito menos a foto em si chamava a atenção. Tratava-se de uma tradicional foto de família; o pai, rodeado de seus filhos, há alguns anos atrás. Tecnicamente falando, a composição estava fora de quadro, o flash clareou demais o primeiro plano, escureceu o fundo. Provavelmente, fotógrafos profissionais precisariam de menos de dois segundos para identificarem a obra realizada como algo fotograficamente inexperiente.
Mesmo assim, a foto chamou-me definitivamente a atenção. Talvez fosse pelo fato que estivesse emoldurada na sala da casa, indicando que era-lhe conferida um valor estético pelos membros da família (e por conseguinte, moral aos olhos dos visitantes). Ao mirar a foto, nada me indicava quem operou a máquina na ocasião. Mesmo assim, eu podia identificar, de algum modo secreto e misterioso, uma espécie de amor transparente para com as pessoas que apareciam na foto. Era como se naquele momento, tivesse ocorrido o que Roland Barthes chama de "fratura fotográfica", que é quando uma imagem nos chama a atenção por algo que provem do nosso inconsciente. Era como se o amor com que aquela pessoa tirara a foto naquela ocasião (seria a mãe, a tia, o avô?) tivesse impressionado o filme da máquina fotográfica no momento do disparo, transparecido para o papel fotográfico e, do papel, tivesse corrido para meus olhos e ecoado em minha mente, ferindo meu senso estético, muitos anos depois.
Algo inexplicável me impede de dizer o motivo exato de ter gostado da foto. Mas, o fato de tê-la mirado, na penumbra de uma sala, sobre a cômoda, me levou a algumas reflexões. Lembrei-me que as fotos sempre nos remetem a um passado que não existe mais, mas que esse passado, a cada dia que passa, fica mais agradável de ser lembrado. E que, de alguma forma, a foto passou-me uma forte impressão, talvez muito mais forte que outras fotografias de grandes fotógrafos, pensadas para sucitar nos espectadores sentimentos profundos. E, nesse caso, cumpriu o seu objetivo. Reflito agora, ironicamente, de que valem as infinitas técnicas e teorias fotográficas? O sentimento de verdade sempre transcende ao mero imediatismo.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Gostei do texto Carlos, muito tocante e profundo, e como sempre bem escrito por ti.

6:27 PM  
Anonymous Anônimo said...

É, Carlos, não podemos deixar que nosso conhecimento técnico interfira na nossa sensibilidade. Isso acontece em todas as áreas. Vc assiste aulas de técnicas básicas de qualquer porcaria e sai achando que é um sabidão, que aquilo é a verdade absoluta. Pura limitação de criatividade e falso conforto aos medíocres.

5:53 PM  
Anonymous Anônimo said...

Odeio esses criticos de artes e odeio relações públicas que acham que sabem de comunicação.

1:23 AM  
Anonymous Anônimo said...

Linkado!

3:10 PM  
Anonymous Anônimo said...

Sempre tive dúvida se a fração mais importante de uma obra de arte seria mesmo a tal da “fratura” que ocorreria durante a interpretação do espectador devido as suas experiências em vida e seu inconsciente ou se o belo da arte não é quando através da técnica o artista consegue capturar para sempre o momento a que se refere na peça e se expressar de tal forma que praticamente ninguém terá dificuldade em saber do que se trata. Como não posso admitir arte sem interpretador confiro-lhe praticamente metade de mérito sobre essa fotografia ok? rs.

Obs. Ótimo texto.

3:34 PM  

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