Em off

Um espaço que agora se ocupa em dar destino à vida de um personagem.

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Local: Curitiba, Paraná, Brazil

domingo, abril 12, 2009

As três negações de Belarmino Moretti (II)

(Um épico de aventura em três negativas)

Capítulo II – de como Belarmino tem a estranha sensação de se ter passado muito tempo entre o primeiro capítulo e esse outro aqui e de como posteriormente salvou o estranho cavaleiro de sua prisão de lodo.



E bem que parecia para Belarmino que o tempo custava a passar. Era como se, do momento em que saíram da fazenda até chegarem à estrada principal houvesse decorrido uma infinidade de tempo, algumas estações talvez, permeadas de cheias e secas. Sem dúvida era uma sensação estranha, por demais difícil de descrever. Há de se perdoar essa falta de precisão do relato: pois que podia saber esse rapaz das coisas que se passavam com o mundo, dos fenômenos das terras e do ar? Era apenas um Belarmino jovem, Moretti, é certo, mas mesmo assim apenas um rapazote ignaro, muito diferente do Belarmino velho, o seu passado avô, que esse esperto era por demais, tão esperto que até encontrara um jeito de subir às mais altas estrelas do céu e lá permanecer a vigiar a vida daqui de baixo.



Mas Belarmino, frente a todas essas manifestações dos tempos, apenas conseguia dar de ombros, não compreendendo a estranha sensação de terem partido da fazenda pelo verão e agora parecer inverno por ali. Não pensou sequer em contar as horas, isso era artifício que nem conseguiria; tempo não era uma das coisas mais exatas na época desse ocorrido. Pois contavam-se as estações que passavam, via-se mais ou menos quanto faltava para o sol descer cobrindo a vista com a mão, mas além disso, tempo pelo tempo não existia, talvez pela falta de necessidade, talvez pela falta de tempo em descobrir um meio de se contá-lo.



As rodas da carroça que conduziam o pai de Belarmino, as várias coisas de comer, os produtos de ferreiro produzidos pelos seus na forja da curva do rio do Vale dos Morettis, os panos para armar a tenda quando chegassem ao paço imperial e uma irmã de Belarmino escondida enrodilhada numa das toalhas que serviriam para estender a mesa produziam sulcos profundos na estrada úmida. Já de bem longe se notava pesada a composição, mas de peso de Belarmino que não era, pois estique o pescoço e veja ali que vai andando o rapaz ao lado da carroça, os olhos baixos, contando as diversas chicotadas que o pai dava na égua, que resfolegava e soltava um bafo quente pelas narinas e os passos das diversas gentes que encontrava pelo caminho.



Muitos eram os Morettis que se juntavam a eles antes de atingirem a saída do vale. Daqui e dali saíam das casinhas de faina de muro baixo, dos celeiros e das habitações de barro e pedra vários parentes, tios, tias, primos de primeiro, segundo e terceiro graus, amigos, empregados, conhecidos de perto de longe e já outros nem tanto conhecidos, todos eles Morettis, todos habitantes do mesmo fundo de vale, Belarmino também um deles mas só mais um no meio de tantos. Ia-se engrossando a comitiva conforme iam atingindo a estrada principal, serpenteando pelos vales encharcados.



A razão de ser dessa comitiva era um só: ir ao paço imperial para celebrar as boas colheitas junto aos seus e ver o casamento da filha do rei com um fidalgo deoutra localidade. Não que isso fosse somente a única razão que guiasse a todos eles; certamente que razões ocultas outras existiam, haveria alguns que lá estavam indo para casarem-se escondidos, outros que estavam indo para amarem-se escondidos sem necessariamente terem que se casar e outros que estavam indo para surrupiarem escondidos daqueles que estivessem casando ou se amando escondidos. Havia todos esses, outros mais e Belarmino, que para a festa estava indo sem nenhuma razão definida, a cabeça baixa, contando os passos das pessoas. Mas como razão alguma não é razão para se contar uma história, eis que nos surge a afamada da razão de Berlarmino, na forma de um cavalo desgovernado, um corcel munido de emblema de alguma cavalaria dalgum reino, que trazia em cima de si um cavaleiro com pesada armadura e que se dirigia, abrindo espaços na multidão, para o destino acertado de onde estava Berlarmino.



Achegava-se com todas as forças, o escuro e resfolegante corcel. Porém, antes que fosse esmagado pelas patas do cavalo, Belarmino foi salvo. E não foi por uma mão heróica que se estendera no último momento para tirá-lo do caminho; antes deve ter sido pela própria inépcia do cavaleiro, ou sagacidade do cavalo, é uma coisa que nunca iremos saber. Pois eis que o cavaleiro da cavalaria desconhecida envereda no último instante sobre a carroça do pai de Belarmino, tomba-a e assusta a velha égua da família que, desembesatada, sai a trotear campina afora. E Belarmino, tanto mais divertido do que de fato assustado, vai logo acudir o cavaleiro, que no resultado de todas as ações que o acidente causou, acabou de cara num charco que ladeava a estrada.



Saltando dentro d'água, Berlarmino tenta erguer o cavaleiro em sua pesada armadura de belo metal brilhante, bem diferente daquele que o pai comumente trabalhava na forja da curva do rio. Mas a ajuda logo se converte em um quase belo gesto inútil; pois o cavaleiro de tal maneira encontrava-se afogado no charco que dificilmente dali um menino como Belarmino conseguiria tirá-lo. Mesmo assim, o conjunto armadura cavaleiro menino fazia um grande rumor, agitando inesperadamente as águas paradas, na tentativa de se livrar do banhado. De dentro do pesado elmo do cavaleiro, que lhe caíra sobre o rosto com o acidente, vinham alguns suspiros afoguetados.



Após alguns instantes, vendo que a empreitada dificilmente lograria algum sucesso, Belarmino tem uma idéia melhor. Corre para a carroça, tombada no meio da estrada, com os pertences por ali espalhados e a sua irmã a choramingar assustada dentro da toalha amarrada, e procura por uma grossa corda que, quando não estava na função de servir de amarração a barraca estava na mão de seu pai para dar uma surra nele e nos seus irmãos, e a leva imediatamente ao local do acidente.



Por ali em volta alguns curiosos se ajuntavam, comentando o acidente. Sim, é certo que já naquela época os acidentes traziam naturalmente atados a si um bando de curiosos a reboque, gente que parecia estar ali previamente, por detrás dos barrancos, ou vagando pelas charnecas, somente à espera do acidente acontecer para ao local ocorrer e ficar a esmo, conjecturando sobre as causas do ocorrido, enquanto algumas crianças riem dos esforços inúteis do cavaleiro para se livrar da armadilha em que o acidente o colocara. Ignorando os comentários e abrindo espaços entre a turba murmurante, Belarmino se enfiou de novo dentro do charco, para perceber que o cavaleiro estava mais atolado que dantes, com meio corpo invisível nas moitas. Com a habilidade de selar cavalos, Belarmino passa a corda por debaixo dos braços do cavaleiro, amarrando-a bem forte nas suas costas.



Dali então salta do charco para uma velha árvore posta pelos tempos, de varde, ao lado da estrada, já velha e quase tentada a mergulhar definitivamente no lodo. Sobe rapidamente por cima de seus galhos secos, o mais alto que pode, e salta do lado oposto, esticando a corda em sua tensão máxima. Não chega a atingir o chão; antes fica ali dependurado, fazendo contra-peso ao cavaleiro que, lá do charco, começa a dar sinais de se levantar das águas. O povo que assiste começa a exclamar excitado, pois muito engenhoso é o invento do menino, passando a corda estrategicamente ao redor da árvore aqui e ali, criando um interessante jogo de roldanas naturais que, magicamente, fazem o pesado cavaleiro se erguer do outro lado.



Agora Belarmino quase toca o chão com seus pés, o cavaleiro do outro lado livre de sua prisão de charco, só que agora preso no ar, amarrado pela corda. Quando toca o chão, rapidamente, Belarmino dá a volta por sobre o tronco da árvore com o resto da corda, olhando para o cavaleiro com uma expressão satisfeita. Reação nenhuma a estranha figura exprime; antes parece que o menino Moretti acabou de salvar uma armadura que achara presa no lodo, resultado dalguma batalha do passado que, uma vez livre, agora está ali pendurada a secar, escoando água e plantas aquáticas pelas suas fendas.

domingo, abril 29, 2007

As Três Negações de Belarmino Moretti (I)

(Um épico de aventura em três negativas)

Capítulo Um - de como Belarmino escutou de sua mãe o ensinamento das três proposições e de como ele quase tomou mais uma surra em nome de um de seus irmãos.

Um dos únicos ensinamentos que Belarmino Moretti legou da mãe ainda em vida foi que um verdadeiro homem e um honrado cavalheiro deveria sempre apresentar suas intenções, a quem quer que fosse, ao menos três vezes. Era somente assim que os ciclos se completariam e a ordem das coisas poderia seguir adiante. É a ordem natural das coisas, cantava sua mãe lá de cima do monjolo, enquanto moia o trigo para fazer farinha. Era o que um verdadeiro homem e honrado cavalheiro deveria sempre fazer.

Como poderia a mãe de Belarmino saber desse ensinamento é um mistério que nunca Belarmino pedira, pediu ou pedirá explicação em vida. Algumas coisas ele soube; soube pois assim lhe pintava a mãe e por imaginação divisava Belarmino: o cavalheiro tanto era aquele indivíduo polido cujos maneirismos impressionam quanto aquele que monta garbosamente um cavalo e empunha uma lança. Pois, por extensão, ambos os cavalheiros são parecidos e não precisamente no sentido de serem indivíduos honrados. Seriam eles antes ladrões; enquanto um rouba dos adversários a vida; outro usurpa das pessoas a atenção. Quanto à grafia das duas palavras serem diferentes e estar o ensinamento incorrendo em erro de gramática pouco nos importa; a palavra escrita ainda não havia adquirido ares de pergaminho nem muito menos de impressão naquele lugar onde as histórias eram ainda passadas de boca em boca, tal qual o ensinamento das três propostas havia sido passado pela mãe da mãe de Belarmino e ele passaria para seus descendentes e esses por aí adiante até sabe-se lá aonde a história diga Basta, pare, aqui estão as raízes do que procuram. E quanto à definição que o ensinamento dava por homem honrado, disso não há como saber; homens eram vários, todos diferentes um do outro e não necessariamente honestos. Algumas coisas a pobre mulher não explicara ao seu filho, tanto por não ter resposta – o ensinamento poderia ser passado pra frente, mas a interpretação dele cabia a cada um fazer – quanto por não ter tempo para refletir sobre isso, pois muitas eram as obrigações existentes da fazenda onde viviam.

A propósito, é numa fazenda, num fundo de vale onde começa a vida de Belarmino e esse relato decide pôr seus arreios. A fazenda dos seus pais, que antes fora dos pais dos seus pais e antes dos pais dos pais de seus pais e antes provavelmente fora terra tomada por Mouros durante a invasão e antes ainda talvez pertencesse a algum outro serviçal sob o serviço de outro rei que antes tivera pais e pais de seus pais e pais dos pais de seus pais e que antes pertencera a alguma tribo nômade e que antes estava à disposição de Deus pai todo poderoso que direito a ela sempre teve, mas como nunca viera procurar, todos os inquilinos passados foram ficando e agora os Moretti por ali iam se estabelecendo; o vale onde todos daqui do córrego até ali o fundo das videiras eram Moretti. Moretti eram todos, seu pai, sua mãe, seus irmãos, os tios, as tias e até os de confiança da casa e os que de longe vinham; tanta gente abrigava aquele lugar que problema algum havia em além do espaço, dividir também o sobrenome; alcunha e terra são coisas que nem todos possuíam ou possuem naqueles e nesses tempos.

Se muitos Moretti ocupavam aquele fundo de vale, Belarmino, todavia, eram apenas ele e o avô. O velho fizera parte nas campanhas contra os mouros em épocas passadas. Belarmino nunca o vira, pois o velho Moretti jamais retornara ao lar; dizem que se sumira numa das últimas batalhas decisivas contra o exército do Xeque. Ou fora deitado por terra como tantos outros o foram naquele mesmo dia ou então fora levado para o segredo da Terra Santa, afim de servir como escravo às gentes do Quarto Crescente. Homem sábio ele era e muito entendia do funcionamento das terras e dos céus, não era de se impressionar que tenha também inventado alguma forma de lá para cima subir para conferir os planos celestes.

Mas deixando de lado uma história estática que pouco se move e abrindo uma outra que se mexe agora para ser estática como a outra daqui a pouco, o dia que descortina esse relato e põe os eventos a correr em seu caminho não foi muito feliz para Belarmino, ainda que fosse dia de comemoração das colheitas anuais. Ele passara a noite a secar e a lavar a lã que fora tosquiada das ovelhas durante o dia anterior, afim de que as mulheres pudessem coser as vestimentas e mantas para o inverno. Não conseguira acordar cedo o bastante para atrelar os freio a égua que levaria as comidas até o paço imperial, oito léguas distante. Acordou com o pai a gritar o nome de Bento, um dos seus irmãos. Era sempre assim; o pai nunca conseguia brigar com o filho certo; na mesma semana, já havia levado surras por Benedito, pelos gêmeos Tomé e Tomas, por Joaquim e até por Maria, uma de suas irmãs que tinha ares de um menino em suas maneiras do que de uma dama propriamente dita.

Enquanto Belarmino corria para buscar as suas botas e colocá-las no pé, retirar as palhas dos seus cabelos, aprumar as vestimentas, descer em três passadas o lanço de escadas, sentar mão num naco de pão e levá-lo à boca, fugir de uma chicotada de seu pai e correr até o estábulo para preparar a égua, pensava no que veria na caravana imperial desse ano.

A caravana imperial era um evento esperado por todas as gentes do ano. Acontecia sempre junto às festas da colheita, quando todos estavam felizes pelas farturas retiradas da terra ou resignados pelas agruras semeadas nela e levadas pelas enchentes rio abaixo. Era um dos poucos momentos no ano quando todos se punham a festejar, indo até o paço imperial pedir a benção ao padroeiro, celebração que mais tarde nossos olhos – ou pelo menos nossas imaginações – hão de testemunhar nesse relato. A caravana imperial era um grupo de artistas itinerante que passava pelas várias regiões do reino a apresentarem novidades do mundo afora. Eram coisas que sempre deixavam o povo em fervor; pois eram coisas que conquistavam mais corações e mentes que o próprio discurso do prior na missa do padroeiro, ainda que ninguém anunciasse isso à boca alta: o inverno estava logo ali para punir as terras e o inferno estava logo lá para levar quem desavisado fosse.

Muitas eram as atrações da caravana, mas não se poderão enumerar aqui, pois vejam lá que Belarmino já se aproxima do estábulo da égua. Porém, quando ia achegar-se para tocar a portinhola, não é que escuta um trinado? E não é de surpresa que o trinado vinha de um pequeno passarinho numa árvore ao lado. O pássaro tinha as penas de um azulado vivo e enchia o peito a trinar. Belarmino olhou para a ave e sorriu; uma de suas diversões era ouvir aquela série de cantos que ouvia da passarada do vale. Ele caçava impiedosamente aqueles que possuíam um canto feio. Não suportava tal coisa. Caçava a eles e também àqueles que possuíam um canto bonito; sonhava em formar um liceu onde os pássaros de canto feio teriam aulas com os pássaros de canto bonito, sendo que os mestres poderiam premiar seus melhores alunos com lugares protegidos para que pudessem construir seus ninhos e punir os alunos indisciplinados com os pontos de construção de ninho e acasalamento mais à vista dos predadores e das intempéries. Ouviu mais uma vez o canto do pássaro azul, mas, em meio a melodia escutou também um pio desesperado de socorro que vinha de alguma moita próxima a seus pés. Olhou com cuidado e lá descobriu um pássaro ainda filhote. Tinha os olhos por círculos azuis, estava despenado e não fazia a mínima idéia de onde estava. Era feio e tinha um canto feio.

Belarmino correu até o estábulo e atrelou a égua. Seu pai já saíra de casa e estava agora vindo ter com ele, ainda zangado e com o chicote em mãos. A mãe estava com toda a carga pronta para ser posta na carroça; eram bolos fumegantes, doces de várias cores e outras culinárias gostosas que dispensam descrição e requerem paladar. A égua finalmente saiu do estábulo: vinha carregando uma carroça velha. O chicote que minutos atrás servira para surrar Belarmino agora era usado para cadenciar o passado do animal. As coisas foram carregadas e Belarmino e o pai seguiram viagem para o paço imperial.
Na árvore ao lado do estábulo, dois pássaros azuis estavam lado a lado no mesmo galho. Ouviu-se um trinado, então silêncio. Logo em seguida, o mesmo trinado repetido, mas dessa vez com alguns erros em sua execução.

sábado, março 10, 2007

Em cena

Terceiro sinal. Hora de começar a encenação. As luzes diminuem, os atrasados correm para os assentos, coisa desnecessária; a bilheteria vai permanecer aberta até quase metade da apresentação, ordens do dono do teatro, que não quer deixar de lucrar com aqueles que chegam.
A rua é pequena, o teatro é pequeno, uma casa de espetáculos que já foi referência – todas já tiveram seus tempos de referência nalgum passado – mas que agora anda carcomida pelo tempo, o tablado cheio de cupins, as cortinas puídas, os assentos saindo espuma pelos rombos de cigarro.

Chovera até quase o primeiro sinal; a audiência era pequena. Uns velhos na primeira fileira, fugindo da monotonia das suas casas empoeiradas, alguns mendigos nas últimas, fugindo da chuva das suas casas de papelão.

Algumas luzes da iluminação estavam quebradas e não poderiam ser substituídas antes da terceira semana de cartaz - se é que chegaríamos até a terceira semana. Quem nos garantiu isso foi o iluminador, entre um gole e outro da bebida barata que guardava no paletó, a produção não tinha dinheiro para gastos sobressalentes e, com mil diabos, ele não podia criar luzes com suas mãos.

A falta de iluminação acarretaria algumas mudanças na dinâmica da peça. Joana, a mulher traída, não poderia caminhar mais que quatro passos em direção ao público na cena em que proferiria o monólogo ao saber da infidelidade; a cena em que Álvaro, o policial que tentava descobrir o assassino do marido traidor, escuta o diálogo que revela a identidade do matador teve que ser cortada pelo fato de que o ator ficaria em um lado do palco onde não havia luz alguma.

O palco era pequeno; alguém poderia atravessá-lo com sete, oito passos. Mas eu não me importava muito com isso; meu papel também era nele, pequeno. Interpretava o médico que tentava curar Joana do trauma da traição, tentava estudá-la, acabava apaixonado. Quando todos pensavam que eu era o assassino, que matara o marido infiel por ter deixado Joana naquele estado, morria no final do segundo ato; uma das reviravoltas da peça, feitas para impressionar os espectadores e derrubar os engraçadinhos que achassem que já haviam desvendado o mistério. No clímax, todos descobririam que eu havia sido morto ao mesmo tempo em que me vinha o suicídio por não ter conseguido ajudar Joana com meu amor. Entrava rapidamente, falava minhas linhas, bancava o apaixonado, morria e desaparecia logo em seguida, tanto para os atores em cena quanto para a audiência torpe.

O espetáculo começou sem grandes rebuliços; o primeiro ato transcorreu bem, exceto pelo menino jornaleiro que atropelou sua fala, quase acertando a cabeça do Marido ao entregar o jornal.

Sineta, fecha a cortina, fumaça de cigarro, sineta, abre cortina novamente. Entrei em cena. Primeiro, tinha que atender Joana e, profissionalmente, ouvir suas lamentações de esposa traída. Receito descanso para ela, converso com meus superiores sobre o caso. Volto a falar com Joana, agora mais interessado. Continuo a escutar suas confissões, identifico-me com ela, me apaixono.

Todos duvidam de mim quando falo sobre o assunto. Começa a cena da minha morte, entro com a pistola na mão. Vejo o assassino de verdade na multidão de figurantes, preparo a pistola, aponto, desvio para minha têmpora no último segundo. Um disparo torpe é ouvido; vou ao chão. Uma poça de sangue acompanha meu movimento. Não sabia desse novo efeito, esbraveja o iluminador lá em cima.

Silêncio. Os figurantes acercam-se do corpo, olham aturdidos entre si. O terceiro sinal e as cortinas baixam, sobre a poça de sangue.

A maior revelação ainda estava por vir, mas meu momento no espetáculo terminara.

terça-feira, agosto 29, 2006

Fraturas transcendentes

"O grande desafio de um fotógrafo é conseguir transferir o seu coração para a ponta do seu indicador no momento que dispara sua câmera". (Robert Doisneau)

Dias atrás, olhei para um porta-retratos na casa de um amigo meu. Não havia nada de interessante na sua moldura, típica de um porta-retratos de uma família média (que conceito confortavelmente idiota o médio!). Muito menos a foto em si chamava a atenção. Tratava-se de uma tradicional foto de família; o pai, rodeado de seus filhos, há alguns anos atrás. Tecnicamente falando, a composição estava fora de quadro, o flash clareou demais o primeiro plano, escureceu o fundo. Provavelmente, fotógrafos profissionais precisariam de menos de dois segundos para identificarem a obra realizada como algo fotograficamente inexperiente.
Mesmo assim, a foto chamou-me definitivamente a atenção. Talvez fosse pelo fato que estivesse emoldurada na sala da casa, indicando que era-lhe conferida um valor estético pelos membros da família (e por conseguinte, moral aos olhos dos visitantes). Ao mirar a foto, nada me indicava quem operou a máquina na ocasião. Mesmo assim, eu podia identificar, de algum modo secreto e misterioso, uma espécie de amor transparente para com as pessoas que apareciam na foto. Era como se naquele momento, tivesse ocorrido o que Roland Barthes chama de "fratura fotográfica", que é quando uma imagem nos chama a atenção por algo que provem do nosso inconsciente. Era como se o amor com que aquela pessoa tirara a foto naquela ocasião (seria a mãe, a tia, o avô?) tivesse impressionado o filme da máquina fotográfica no momento do disparo, transparecido para o papel fotográfico e, do papel, tivesse corrido para meus olhos e ecoado em minha mente, ferindo meu senso estético, muitos anos depois.
Algo inexplicável me impede de dizer o motivo exato de ter gostado da foto. Mas, o fato de tê-la mirado, na penumbra de uma sala, sobre a cômoda, me levou a algumas reflexões. Lembrei-me que as fotos sempre nos remetem a um passado que não existe mais, mas que esse passado, a cada dia que passa, fica mais agradável de ser lembrado. E que, de alguma forma, a foto passou-me uma forte impressão, talvez muito mais forte que outras fotografias de grandes fotógrafos, pensadas para sucitar nos espectadores sentimentos profundos. E, nesse caso, cumpriu o seu objetivo. Reflito agora, ironicamente, de que valem as infinitas técnicas e teorias fotográficas? O sentimento de verdade sempre transcende ao mero imediatismo.

domingo, julho 23, 2006

Um passaro? Um aviao?

Claro que todo mundo sabe o que é um herói; as revistas em quadrinhos devem ter povoado suas casas anos atrás; hoje são mera literatura de banheiro ou estão esquecidas nalgum canto escondido (todos têm um canto escondido em casa, basta procurar).

Enfim, quero chamar a atencao para a figura do herói. E quero dizer que não é exatamente sobre esta figura que quero falar. O Super Homem, o Homem Aranha e o Batman fazem parte do imaginário coletivo; são representações das aspirações humanas dentro de um contexto histórico. Querer salvar o mundo do crime ou poder zelar pela paz universal e eterna é de certa forma um desejo reprimido dentro da maior parte das pessoas; elas apenas extravasam isso de suas mentes ao criarem e cultuarem os heróis.

O mais interessante é que a figura do herói se faz presente muito antes dos quadrinhos da Marvel ou das telas de cinema; eles se fazem presentes em toda a história da Humanidade. Não existe um conectivo lógico que explique o seu surgimento; existem lendas que descrevem atos heróicos tanto no imaginário grego – em relatos como a Odisséia e a Ilíada que ficaram famosos porque vieram até nós através da escrita – quanto no folclore tupi guarani.

No termo mais próprio da palavra, o herói é uma pessoa que empreende uma viagem em busca de algo, saindo de um ponto inicial e querendo alcançar outro, uma finalidade, um proposito. Qual será este propósito final e quais os caminhos que devem ser empreendidos para se chegar até lá nunca são revelados de inicio; é tarefa do herói ir atrás deles, e somente a sua jornada revelará mais sobre sua busca. A missão do herói também é revestida de tentativas e repetições – o chamado eterno-retorno; ele jamais consegue avançar para a próxima etapa de sua busca se não fizer tudo o que tem que fazer em determinada situação.

O mito do dragão – nas lendas medievais ocidentais – também guarda sua relação com o imaginário heróico. O dragão é um ser que guarda consigo uma serie de coisas valiosas; ouro, jóias, donzelas, armaduras. Mas ele não sabe por quê razão as guarda; ele apenas...as guarda. Então, o herói entra em cena e tentará vencer o dragão. O interessante é que o dragão sempre representa alguma fraqueza do herói; seja o seu medo por fogo ou simplesmente a aversão pelo desconhecido. É entao que abrem-se duas opções para o desfecho da historia. Em alguns mitos o cavaleiro realmente vence o dragão – e seus medos – tornando-se senhor de todas as coisas que ali estão guardadas. Já em outros ele derrota o monstro porem acaba sucumbindo com ele em um primeiro momento, renascendo logo depois em algo diferente, mais forte e rejuvenescido.

Eu sei que enquanto escrevo isso, você está imaginando centenas de enredos de desenhos animados, filmes ou historinhas infantis. Realmente esta antiga forma de se contar historias – talvez a mais antiga – já foi e ainda é usada exaustivamente para este mesmo fim...contar historias. A maioria das pessoas se cansa de ouvi-las depois de um tempo (basta lembrar das revistinhas no canto escondido).

Às vezes penso que os Heróis são apenas mera bobagem para se entreter crianças; ou um pergaminho que apenas representa as historias e o pensamento retrogrado do passado. Talvez seja isso mesmo.

Porém, eu não consigo deixar de pensar nos heróis e nas suas eternas buscas fantásticas de quando em quando.

Ps: Não quis colocar nenhuma conclusão clichê no final desse post, perguntando se heróis realmente existem ou fazendo uma enquete sobre se você fosse um herói qual seria.

sexta-feira, junho 30, 2006

Ao sair, por favor, apague a luz


Já não serei mais feliz. Mas tanto faz.
Há tantas outras coisas nesse mundo;
Um instante qualquer é mais profundo,
Diverso que o mar. A vida, fugaz,
E embora as horas passem devagar,
Obscura maravilha nos espera,
A morte, esse outro mar, essa outra seta
Que do sol nos liberta e do luar
E do amor. A alegria que me doaste
E me tiraste, que seja apagada;
O que era tudo se transforme em nada.
O gozo de estar triste só me baste,
Este costume vão que a mim inclina
Ao sul, a certa porta, a certa esquina.
Um epitafio.
Borges talhou-o.

quinta-feira, abril 13, 2006

Ele por ele mesmo

Um dia, Roberto descobriu ser um homem ridículo. Não que nunca tivesse notado isso, mas pelo menos disfarçava, fingia não ser com ele. Porém, finalmente, depois de refletir, Roberto descobriu-se homem ridículo.

Em verdade, não pensou muito. No fundo, era ridículo por definição própria.

Decidiu virar escritor de madrugada; mais um daqueles diabos que passam noites e noites batucando as letrinhas de uma máquina de escrever velha, achando-se muito diferente e superior do resto do povo que dorme àquela hora.

Obviamente, esquecia (ou talvez mentia pra si mesmo tentando não lembrar) que os dormentes eram muito mais dignos e superiores que ele. Pois o resto do mundo dormia, e se dormia, sonhava. E sonhar é justamente o que lhe era proibido, era a quimera da sua mediocridade. Ele pensava, refletia, escrevia, editava e corrigia. Os outros dormiam, sonhavam, sorriam e quiçá se alegravam em seus sonos.

Roberto descobriu-se, um dia, um homem ridículo, desses que andam de cabeça baixa sem motivo, falam palavras sem nexo e andam de jeito esquisito. Talvez tenha sido sempre assim, talvez esse seja seu eterno rosto transitivo.

Todas as noites, antes de sentar-se para escrever em sua velha máquina de escrever, pergunta-se se sua vida deixará um dia de ser assim. Mas ele simplesmente não sabe responder. É demasiado ridículo para pensar demais sobre esse assunto.