Em off

Um espaço que agora se ocupa em dar destino à vida de um personagem.

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Local: Curitiba, Paraná, Brazil

domingo, abril 29, 2007

As Três Negações de Belarmino Moretti (I)

(Um épico de aventura em três negativas)

Capítulo Um - de como Belarmino escutou de sua mãe o ensinamento das três proposições e de como ele quase tomou mais uma surra em nome de um de seus irmãos.

Um dos únicos ensinamentos que Belarmino Moretti legou da mãe ainda em vida foi que um verdadeiro homem e um honrado cavalheiro deveria sempre apresentar suas intenções, a quem quer que fosse, ao menos três vezes. Era somente assim que os ciclos se completariam e a ordem das coisas poderia seguir adiante. É a ordem natural das coisas, cantava sua mãe lá de cima do monjolo, enquanto moia o trigo para fazer farinha. Era o que um verdadeiro homem e honrado cavalheiro deveria sempre fazer.

Como poderia a mãe de Belarmino saber desse ensinamento é um mistério que nunca Belarmino pedira, pediu ou pedirá explicação em vida. Algumas coisas ele soube; soube pois assim lhe pintava a mãe e por imaginação divisava Belarmino: o cavalheiro tanto era aquele indivíduo polido cujos maneirismos impressionam quanto aquele que monta garbosamente um cavalo e empunha uma lança. Pois, por extensão, ambos os cavalheiros são parecidos e não precisamente no sentido de serem indivíduos honrados. Seriam eles antes ladrões; enquanto um rouba dos adversários a vida; outro usurpa das pessoas a atenção. Quanto à grafia das duas palavras serem diferentes e estar o ensinamento incorrendo em erro de gramática pouco nos importa; a palavra escrita ainda não havia adquirido ares de pergaminho nem muito menos de impressão naquele lugar onde as histórias eram ainda passadas de boca em boca, tal qual o ensinamento das três propostas havia sido passado pela mãe da mãe de Belarmino e ele passaria para seus descendentes e esses por aí adiante até sabe-se lá aonde a história diga Basta, pare, aqui estão as raízes do que procuram. E quanto à definição que o ensinamento dava por homem honrado, disso não há como saber; homens eram vários, todos diferentes um do outro e não necessariamente honestos. Algumas coisas a pobre mulher não explicara ao seu filho, tanto por não ter resposta – o ensinamento poderia ser passado pra frente, mas a interpretação dele cabia a cada um fazer – quanto por não ter tempo para refletir sobre isso, pois muitas eram as obrigações existentes da fazenda onde viviam.

A propósito, é numa fazenda, num fundo de vale onde começa a vida de Belarmino e esse relato decide pôr seus arreios. A fazenda dos seus pais, que antes fora dos pais dos seus pais e antes dos pais dos pais de seus pais e antes provavelmente fora terra tomada por Mouros durante a invasão e antes ainda talvez pertencesse a algum outro serviçal sob o serviço de outro rei que antes tivera pais e pais de seus pais e pais dos pais de seus pais e que antes pertencera a alguma tribo nômade e que antes estava à disposição de Deus pai todo poderoso que direito a ela sempre teve, mas como nunca viera procurar, todos os inquilinos passados foram ficando e agora os Moretti por ali iam se estabelecendo; o vale onde todos daqui do córrego até ali o fundo das videiras eram Moretti. Moretti eram todos, seu pai, sua mãe, seus irmãos, os tios, as tias e até os de confiança da casa e os que de longe vinham; tanta gente abrigava aquele lugar que problema algum havia em além do espaço, dividir também o sobrenome; alcunha e terra são coisas que nem todos possuíam ou possuem naqueles e nesses tempos.

Se muitos Moretti ocupavam aquele fundo de vale, Belarmino, todavia, eram apenas ele e o avô. O velho fizera parte nas campanhas contra os mouros em épocas passadas. Belarmino nunca o vira, pois o velho Moretti jamais retornara ao lar; dizem que se sumira numa das últimas batalhas decisivas contra o exército do Xeque. Ou fora deitado por terra como tantos outros o foram naquele mesmo dia ou então fora levado para o segredo da Terra Santa, afim de servir como escravo às gentes do Quarto Crescente. Homem sábio ele era e muito entendia do funcionamento das terras e dos céus, não era de se impressionar que tenha também inventado alguma forma de lá para cima subir para conferir os planos celestes.

Mas deixando de lado uma história estática que pouco se move e abrindo uma outra que se mexe agora para ser estática como a outra daqui a pouco, o dia que descortina esse relato e põe os eventos a correr em seu caminho não foi muito feliz para Belarmino, ainda que fosse dia de comemoração das colheitas anuais. Ele passara a noite a secar e a lavar a lã que fora tosquiada das ovelhas durante o dia anterior, afim de que as mulheres pudessem coser as vestimentas e mantas para o inverno. Não conseguira acordar cedo o bastante para atrelar os freio a égua que levaria as comidas até o paço imperial, oito léguas distante. Acordou com o pai a gritar o nome de Bento, um dos seus irmãos. Era sempre assim; o pai nunca conseguia brigar com o filho certo; na mesma semana, já havia levado surras por Benedito, pelos gêmeos Tomé e Tomas, por Joaquim e até por Maria, uma de suas irmãs que tinha ares de um menino em suas maneiras do que de uma dama propriamente dita.

Enquanto Belarmino corria para buscar as suas botas e colocá-las no pé, retirar as palhas dos seus cabelos, aprumar as vestimentas, descer em três passadas o lanço de escadas, sentar mão num naco de pão e levá-lo à boca, fugir de uma chicotada de seu pai e correr até o estábulo para preparar a égua, pensava no que veria na caravana imperial desse ano.

A caravana imperial era um evento esperado por todas as gentes do ano. Acontecia sempre junto às festas da colheita, quando todos estavam felizes pelas farturas retiradas da terra ou resignados pelas agruras semeadas nela e levadas pelas enchentes rio abaixo. Era um dos poucos momentos no ano quando todos se punham a festejar, indo até o paço imperial pedir a benção ao padroeiro, celebração que mais tarde nossos olhos – ou pelo menos nossas imaginações – hão de testemunhar nesse relato. A caravana imperial era um grupo de artistas itinerante que passava pelas várias regiões do reino a apresentarem novidades do mundo afora. Eram coisas que sempre deixavam o povo em fervor; pois eram coisas que conquistavam mais corações e mentes que o próprio discurso do prior na missa do padroeiro, ainda que ninguém anunciasse isso à boca alta: o inverno estava logo ali para punir as terras e o inferno estava logo lá para levar quem desavisado fosse.

Muitas eram as atrações da caravana, mas não se poderão enumerar aqui, pois vejam lá que Belarmino já se aproxima do estábulo da égua. Porém, quando ia achegar-se para tocar a portinhola, não é que escuta um trinado? E não é de surpresa que o trinado vinha de um pequeno passarinho numa árvore ao lado. O pássaro tinha as penas de um azulado vivo e enchia o peito a trinar. Belarmino olhou para a ave e sorriu; uma de suas diversões era ouvir aquela série de cantos que ouvia da passarada do vale. Ele caçava impiedosamente aqueles que possuíam um canto feio. Não suportava tal coisa. Caçava a eles e também àqueles que possuíam um canto bonito; sonhava em formar um liceu onde os pássaros de canto feio teriam aulas com os pássaros de canto bonito, sendo que os mestres poderiam premiar seus melhores alunos com lugares protegidos para que pudessem construir seus ninhos e punir os alunos indisciplinados com os pontos de construção de ninho e acasalamento mais à vista dos predadores e das intempéries. Ouviu mais uma vez o canto do pássaro azul, mas, em meio a melodia escutou também um pio desesperado de socorro que vinha de alguma moita próxima a seus pés. Olhou com cuidado e lá descobriu um pássaro ainda filhote. Tinha os olhos por círculos azuis, estava despenado e não fazia a mínima idéia de onde estava. Era feio e tinha um canto feio.

Belarmino correu até o estábulo e atrelou a égua. Seu pai já saíra de casa e estava agora vindo ter com ele, ainda zangado e com o chicote em mãos. A mãe estava com toda a carga pronta para ser posta na carroça; eram bolos fumegantes, doces de várias cores e outras culinárias gostosas que dispensam descrição e requerem paladar. A égua finalmente saiu do estábulo: vinha carregando uma carroça velha. O chicote que minutos atrás servira para surrar Belarmino agora era usado para cadenciar o passado do animal. As coisas foram carregadas e Belarmino e o pai seguiram viagem para o paço imperial.
Na árvore ao lado do estábulo, dois pássaros azuis estavam lado a lado no mesmo galho. Ouviu-se um trinado, então silêncio. Logo em seguida, o mesmo trinado repetido, mas dessa vez com alguns erros em sua execução.