Em off

Um espaço que agora se ocupa em dar destino à vida de um personagem.

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Local: Curitiba, Paraná, Brazil

sábado, março 10, 2007

Em cena

Terceiro sinal. Hora de começar a encenação. As luzes diminuem, os atrasados correm para os assentos, coisa desnecessária; a bilheteria vai permanecer aberta até quase metade da apresentação, ordens do dono do teatro, que não quer deixar de lucrar com aqueles que chegam.
A rua é pequena, o teatro é pequeno, uma casa de espetáculos que já foi referência – todas já tiveram seus tempos de referência nalgum passado – mas que agora anda carcomida pelo tempo, o tablado cheio de cupins, as cortinas puídas, os assentos saindo espuma pelos rombos de cigarro.

Chovera até quase o primeiro sinal; a audiência era pequena. Uns velhos na primeira fileira, fugindo da monotonia das suas casas empoeiradas, alguns mendigos nas últimas, fugindo da chuva das suas casas de papelão.

Algumas luzes da iluminação estavam quebradas e não poderiam ser substituídas antes da terceira semana de cartaz - se é que chegaríamos até a terceira semana. Quem nos garantiu isso foi o iluminador, entre um gole e outro da bebida barata que guardava no paletó, a produção não tinha dinheiro para gastos sobressalentes e, com mil diabos, ele não podia criar luzes com suas mãos.

A falta de iluminação acarretaria algumas mudanças na dinâmica da peça. Joana, a mulher traída, não poderia caminhar mais que quatro passos em direção ao público na cena em que proferiria o monólogo ao saber da infidelidade; a cena em que Álvaro, o policial que tentava descobrir o assassino do marido traidor, escuta o diálogo que revela a identidade do matador teve que ser cortada pelo fato de que o ator ficaria em um lado do palco onde não havia luz alguma.

O palco era pequeno; alguém poderia atravessá-lo com sete, oito passos. Mas eu não me importava muito com isso; meu papel também era nele, pequeno. Interpretava o médico que tentava curar Joana do trauma da traição, tentava estudá-la, acabava apaixonado. Quando todos pensavam que eu era o assassino, que matara o marido infiel por ter deixado Joana naquele estado, morria no final do segundo ato; uma das reviravoltas da peça, feitas para impressionar os espectadores e derrubar os engraçadinhos que achassem que já haviam desvendado o mistério. No clímax, todos descobririam que eu havia sido morto ao mesmo tempo em que me vinha o suicídio por não ter conseguido ajudar Joana com meu amor. Entrava rapidamente, falava minhas linhas, bancava o apaixonado, morria e desaparecia logo em seguida, tanto para os atores em cena quanto para a audiência torpe.

O espetáculo começou sem grandes rebuliços; o primeiro ato transcorreu bem, exceto pelo menino jornaleiro que atropelou sua fala, quase acertando a cabeça do Marido ao entregar o jornal.

Sineta, fecha a cortina, fumaça de cigarro, sineta, abre cortina novamente. Entrei em cena. Primeiro, tinha que atender Joana e, profissionalmente, ouvir suas lamentações de esposa traída. Receito descanso para ela, converso com meus superiores sobre o caso. Volto a falar com Joana, agora mais interessado. Continuo a escutar suas confissões, identifico-me com ela, me apaixono.

Todos duvidam de mim quando falo sobre o assunto. Começa a cena da minha morte, entro com a pistola na mão. Vejo o assassino de verdade na multidão de figurantes, preparo a pistola, aponto, desvio para minha têmpora no último segundo. Um disparo torpe é ouvido; vou ao chão. Uma poça de sangue acompanha meu movimento. Não sabia desse novo efeito, esbraveja o iluminador lá em cima.

Silêncio. Os figurantes acercam-se do corpo, olham aturdidos entre si. O terceiro sinal e as cortinas baixam, sobre a poça de sangue.

A maior revelação ainda estava por vir, mas meu momento no espetáculo terminara.